Conscientização sobre autismo deve se estender à inclusão profissional de autistas e familiares
Decisões do TST têm assegurado a mães e pais de pessoas com autismo jornadas e modalidades diferenciadas
O Dia Mundial de Conscientização sobre o Autismo é celebrado em 2 de abril. Criado pela Organização das Nações Unidas (ONU), o objetivo é difundir informações para a população sobre o autismo e, dessa forma, reduzir a discriminação e o preconceito que cercam as pessoas afetadas pelo transtorno.
Estima-se que, no mundo, cerca de uma em cada 100 crianças tenha Transtornos do Espectro Autista (TEA), segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Mas estudos bem controlados relatam incidências bem mais altas, que podem chegar a um caso para cada 36 crianças.
No Brasil, o tema foi incluído pela primeira vez no Censo Demográfico 2022, cujos resultados ainda estão em processamento pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A ausência de dados, contudo, não deve invisibilizar os desafios dessa parcela da população ou seus familiares, entre eles o da inclusão no mercado de trabalho.
O que é autismo
De acordo com a OMS, os Transtornos do Espectro do Autismo são um grupo de condições caracterizadas por algum grau de dificuldade com comunicação e interação social, além de padrões atípicos de atividades e comportamentos (como dificuldade na transição de uma atividade para outra, foco em detalhes e reações incomuns às sensações). Também há casos em que o autismo está associado a um atraso no desenvolvimento, como na fala, coordenação motora e capacidade de brincar com outras crianças.
Esses traços se manifestam de diferentes maneiras e em diferentes graus. Algumas pessoas podem viver de forma independente, enquanto outras têm deficiências graves e requerem cuidados e apoio ao longo da vida. Isso tem impacto direto na educação e nas oportunidades de inserção profissional. Além disso, a demanda sobre a família pode afetar, também, a situação dos responsáveis legais no trabalho.
Política Nacional
Desde 2012, o Brasil conta com a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (Lei 12.764/2012). Entre outros temas, ela prevê o direito e o estímulo à inserção da pessoa com TEA no mercado de trabalho, inclusive como aprendizes.
Para efeitos legais, quem tem autismo é considerado pessoa com deficiência. Assim, sua contratação também é considerada para o cumprimento da cota prevista na Lei 8.213/1991.
Visão estereotipada
Desde que descobriu o diagnóstico de TEA do seu primeiro filho, a juíza do trabalho Adriana Manta (foto), da 24ª Vara de Salvador (BA), tem se aprofundado nos estudos sobre o tema. Para ela, as principais barreiras para a inclusão de autistas nas empresas são atitudinais – comportamentos que acabam por gerar exclusão. “Há muito preconceito e uma visão estereotipada sobre o autismo. Falta conhecimento e relacionamento interpessoal empático. O que precisa, muitas vezes, é informação, qualificação e diálogo”, avalia.
Atividades estruturadas
Guilherme de Almeida (foto), que é autista e preside a Associação Nacional para Inclusão das Pessoas Autistas, destaca outras medidas importantes: flexibilidade de horários e tarefas, adaptação do ambiente físico (iluminação, ruídos, cores e texturas), para torná-lo mais amigável, tecnologias assistivas, mentoria e suporte para a integração. Ele cita também a necessidade de comunicação clara e direta, “evitando figuras de linguagem, sarcasmo e ironia, que podem ser difíceis de entender para pessoas autistas”. Atividades bem estruturadas e com objetivos claros também tendem a ser benéficas.
Eliminando barreiras
A Specialisterne – organização de impacto social presente em 25 países, incluindo o Brasil – promove treinamentos de autistas, avalia suas competências e mapeia o seu perfil a fim de direcioná-las para as vagas mais adequadas. Após a contratação, treina quem irá interagir com o profissional, além de acompanhar e definir estratégias de acessibilidade na rotina de trabalho. Em sete anos, a empresa já inseriu quase 300 profissionais autistas em mais de 40 empresas.
“Quando falamos de pessoas neuroatípicas e autistas, observamos pessoas muito talentosas que muitas vezes não passam da barreira da entrevista”, destaca Rute Rodrigues, diretora de operações da organização. “É muito importante que as empresas se atentem aos processos para contratar profissionais autistas e oferecer o suporte adequado para o desenvolvimento de carreira”.
Neurodiversidade
Segundo o jornalista Tiago Abreu, um ambiente de trabalho saudável é, antes de tudo, plural, em que todos possam deixar suas contribuições de acordo com o repertório e as experiências de vida. “As empresas devem estar atentas a isso e também se questionar sobre a pluralidade de suas equipes”, assinala.
Diagnosticado com autismo em 2015, Tiago é autor do livro “O que é neurodiversidade”. O conceito foi criado pela socióloga australiana Judy Singer e traduz a pluralidade neurológica dos seres humanos, “uma ideia de conservação e valorização das diferentes formas de ser e existir”.
Para Guilherme Almeida, organizações que se preocupem verdadeiramente com isso devem criar vagas que considerem a realidade dessas pessoas, respeitando sua qualificação e suas habilidades. “A grande transformação acontecerá quando as empresas e seus líderes adotarem um estilo de gestão que enfatize a colocação de cada pessoa em um contexto que maximize suas contribuições a partir de suas potencialidades”.
Parentalidade atípica
Algumas vezes, a existência de um membro da família no espectro autista tem impacto significativo na rotina. A exigência de cuidados especializados pode demandar, por exemplo, horários flexíveis ou afastamento temporário do trabalho. Outros efeitos, segundo Guilherme Almeida, são o estresse e a sobrecarga dos cuidadores, além do aumento de gastos para adaptações e custeio de terapias e remédios.
A juíza Adriana Manta tem aprendido a superar, dia a dia, os desafios que se impõem pelas necessidades do filho com TEA e compreendido os impactos na vida de muitas pessoas. Na convivência com outras famílias, ela observa que as mulheres são as principais afetadas. “O índice de abandono parental é muito grande, e as mulheres acabam por assumir esses cuidados sozinhas”, comenta.
Impossibilitadas de cumprir a agenda de um emprego formal, muitas precisam recorrer a atividades informais ou a empreender de maneira autônoma. “Retira-se dessas mães a possibilidade de uma inserção digna, pois elas não deixam de trabalhar e acabam na informalidade, em trabalhos piores, ou, a depender do caso, ficam totalmente excluídas do mundo produtivo”.
Ela lembra que esse cenário afeta, também, o acesso da criança a cuidados terapêuticos que podem ser decisivos para sua formação educacional e para uma vida com mais independência e autonomia, realimentando um ciclo de exclusão.
Justiça do Trabalho
Por causa desses impactos na vida familiar e dos reflexos sobre a rotina profissional dos cuidadores, o tema da parentalidade atípica tem chegado à Justiça do Trabalho. São, especialmente, processos em que mães e pais que atuam em empresas públicas buscam jornadas diferenciadas ou teletrabalho, a fim de conciliar as atividades com os cuidados dos filhos. No Tribunal Superior do Trabalho, ao menos 14 processos sobre o assunto foram julgados no ano passado.
Em um dos casos, apreciado pela Sétima Turma em novembro de 2022, uma empregada dos Correios que não conta com o apoio do pai biológico conseguiu reduzir a jornada em 50%, sem alteração salarial. O filho precisa da mãe para coisas simples, como alimentação, higiene e segurança pessoal.
O relator, ministro Cláudio Brandão, ressaltou a importância da entidade familiar na formação das crianças, adolescentes ou jovens submetidos aos seus cuidados, principalmente em situações de vulnerabilidade. Também salientou que, de acordo com a Constituição Federal, é dever do Estado criar programas de prevenção e atendimento especializado a pessoas com deficiência, mediante o treinamento para o trabalho e a convivência, e facilitar o acesso a bens e serviços coletivos. (Ag-AIRR-10144-56.2019.5.15.0153)
Noutro caso, julgado em outubro do ano passado, um analista de TI do Instituto de Tecnologia da Informação e Comunicação do Estado do Espírito Santo (Prodest) conseguiu autorização para regime de teletrabalho na Itália, a fim de cuidar do filho de 29 anos com TEA em grau elevado, que também demanda cuidados permanentes para atividades básicas. O filho vive fora do país com a mãe, que está doente e impossibilitada de dar a atenção necessária ao rapaz.
O ministro Agra Belmonte, relator do caso, destacou que a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), que tem força de norma constitucional no Brasil, prevê o compromisso do Estado de fazer todo o esforço para que a família imediata tenha condições de cuidar de uma pessoa com deficiência. (AIRR-1208-69.2018.5.17.0008)
Papel de todos
Por outro lado, há aspectos positivos para a família que tem um membro com autismo. Entre eles, segundo o presidente da Associação Nacional para Inclusão das Pessoas Autistas, está o fortalecimento dos laços familiares, o desenvolvimento de habilidades de comunicação e empatia e a valorização das diferenças individuais. Para minimizar os impactos negativos e potencializar os positivos, ele defende o apoio adequado à família, com informações, orientações, suporte e aconselhamento.
A OMS também ressalta que atitudes da sociedade e políticas de Estado de apoio e inclusão são fundamentais para a qualidade de vida das pessoas com autismo e de suas famílias.
Na opinião da juíza Adriana Manta, o tema precisa ser cada vez mais evidenciado. “As pessoas precisam saber o que esperar, precisam de informação, porque isso reduz barreiras atitudinais”, observa. E, a seu ver, a Justiça do Trabalho tem um papel importante, por meio das decisões que asseguram direitos e por meio da provocação do diálogo social e institucional em torno do tema.
(Natália Pianegonda/CF)
Fonte: secom/tstjus
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